terça-feira, 13 de maio de 2008

VLADIMIR NABOKOV LOLITA


VLADIMIR NABOKOV LOLITA
2003
Impressão Globo Cochrane Grafica.
Tradução: Jorio Dauster


Lolita ou A confissão de um viúvo de cor branca: era esse o duplo título das estranhas páginas recebidas pelo autor da presente nota: "Humbert Humbert", que as escreveu, morrera na prisão de uma trombose coronária, em 16 de novembro de 1952, poucos dias antes da data marcada para inicio de seu julgamento. Ao pedir que eu revisasse o manuscrito, seu advogado - meu bom amigo e parente Clarence Choate Clark, que atualmente milita no foro do distrito de Columbia - baseou-se numa cláusula do testamento de "H. H" que deixava a critério de meu eminente primo todas as providencias necessarias á publicação de Lolita. Provavelmente pesou na decisão do Sr. Clark o fato de que o revisor por ele escolhido havia pouco recebera o Prêmio Poling por uma modesta obra (Será que os sentidos fazem sentido?), na qual haviam sido estudadas certas perversões e estados mórbidos.
Minha tarefa revelou-se mais simples do que ambos tínhamos previsto. Exceto pela correção de óbvios solecismos e pela cuidadosa eliminação de uns poucos mais obstinados pormenores que, malgrados os proprios esforços de "H.H", ainda subsistian no texto, como placas de estrada e lápides tumulares (lembrando lugares ou pessoas que cabería ocultar por bom gosto e poupar por compaixão), essas notáveis memórias são apresentadas sem retoques. O singular cognome do autor é de sua própria lavra; e, naturalmente, essa máscara - através da qual parecem cintilar dois olhos hipnóticos - não poderiam ser removidas segundo a vontade de seu portador. Embora Haze apenas rime com o verdadeiro sobrenome da heroína, seu primeiro nome esta por demais entrelaçado com as fibras profundas da obra para que se possa pensar alterá-lo - o que, como o leitor verá por si mesmo, de todo modo não é necessario. As mentes curiosas encontrarão referencias ao crime de "H.H" nos jornais de setembro e outubro de 1952; mas sua causa e seu propósito seriam ainda um mistério absoluto se por acaso essas memórias não tivessem vindo pousar sob minha lâmpada de leitura.
Em favor dos leitores da velha guarda, que gostam de acompanhar o destino das pessoas "reais" depois de encerrada a "verdadeira" história, podem-se oferecer alguns pormenores fornecidos pelo sr. "Windmuller", de "Ramsdale", desejoso de manter-se no anonimato a fim de que "a longa sombra desse sórdido e lamentavel caso" não atinja a comunidade da qual se orgulha de pertencer. Sua filha, "Louise", esta atualmente cursando o segundo ano de uma universidade. "Mona Dahl" estuda em Paris. "Rita" casou-se recentemente com um dono de um hotel na Flórida. A sra. "Richard F. Schiller" morreu ao dar a luz a uma menina natimorta no Natal de 1952, em Gray Star, um povoado nos confins do Noroeste. "Vivian Darkbloom" escreveu uma autobiografia a ser publicada brevemente, Minha Deixa, considerado como seu melhor livro pelos críticos que tiveram acesso ao manuscrito. Os guardas dos diversos cemiterios envolvidos na historia não registraram a aparição de nenhum fantasma.
Visto simplesmente como um romance, Lolita trata de situações e emoções que, caso houvesse sido abrandadas por meios de chavões insossos, teriam permanecidos irritantemente obscuras aos olhos do leitor. A verdade é que a obra não abriga um único termo obsceno: de fato, o impávido filisteu, condicionado pelas convenções modernas a aceitar sem repugnancia uma ampla exibição de palavras chulas nos romances mais banais, ficará chocado com sua ausência nesta obra. Se, no entanto, para não ofender essa paradoxal pudicícia, um revisor tentasse diluir ou suprimir as passagens que certo tipo de gente poderia chamar de "afrodisiacas" (ver, a esse respeito, a monumental decisão proferida a 6 de dezembro de 1933 pelo meritíssimo juiz John M. Woolsey com relação a outro livro, muito mais ousado), forçoso seria abandonar de vez a publicação de Lolita, pois os episódios que se poderiam tolamente acusar de possuir uma existencia sensual própria são funcionalmente imprescindíveis ao desenvolvimento de um relato trágico que se encaminha, de modo inexorável, rumo a verdadeira apoteose moral. Os cínicos talvez digam que a pornografia comercial faz idêntica reinvindicação; os eruditos poderão argumentar que a apaixonada confissão de "H.H" é uma tempestade num tubo de ensaio, pois ao menos doze por cento dos adultos americanos do sexo masculino - "numa estimativa por baixo", segundo a dra. Blanche Schawarzmann (comunicação verbal) - desfrutam anualmente, de uma forma ou de outra, da experiência especial que "H.H" descreve com tamanho desespero; dirão ainda que, se nosso ensandecido memorialista houvesse procurado um psicólogo competente no fatídico verão de 1947, o desastre teria sido evitado - mas, nesse caso, tampouco este livro teria existido.
Que se desculpe este comentarista por aqui repetir o que vem enfatizando em seus livros e palestras, isto é, que não raro a palavra chocante serve apenas como sinónimo de incomum, e que toda grande obra de arte é sempre algo necessariamente original, devendo por isso mesmo provocar uma reação de surpresa maios menos chocante. Não tenho a menor intenção de glorificar "H.H". Trata-se, sem dúvida, de uma pessoa horrivel e abjeta, notável exemplo de lepra moral, que assume um tom entre feroz e jocoso talvez para esconder o mais profundo sofrimento, mas que não inspira qualquer simpatia. É cansativo em sus indiossincrasias. Muitos de seus comentarios incidentais sobre o povo e a paissagem deste país são ridículos. A sinceridade desenfreada que permeia sua confissão não absolve dos pecados de uma astúcia diabólica. É um ser anormal, nada tem de gentleman. Mas com que acordes mágicos seu violino evoca uma ternura, uma compaixão por Lolita que faz com que nos sintamos fascinado pelo livro embora abominando seu autor!
Como caso clínico, Lolita por certo será visto como um clássico nos meios psiquiátricos. Como obra de arte, transcende seu aspecto expiatório. Todavia, mais importante que sua relevãncia científica ou valor literário é o impacto ético que o livro deve exercer sobre o leitor serio, pois nessa dolorosa trajetória pessoal transparece uma lição de cunho genérico: a criança desobediente, a mãe egoista, o maniaco ofegante não são apenas vívidos personagens de um drama excepcional. Eles nos advertem sobre tendencias perigosas, apontam para gravíssimos males. Lolita deveria fazer com que todos nós - pais, educadores, assistentes sociais - nos empenhássemos com diligencia e visão ainda maiores na tarefa de criar uma geração melhor num mundo mais seguro.
John Ray Jr.
Doutor em filosofia
Widworth, Massachussetts
5 de agosto de 1955


Tienda Cafe Con Che

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