ALEXANDRE SOLJENITSIN ARQUIPELAGO DE GULAB 1918 - 1956
Circulo do Livro
1975
Foi com o coração oprimido que me abstive, durante anos, de publicar este livro, já há muito concluído: o dever perante os vivos prevalecia sobre o dever perante os mortos. Agora, porém, que as forças de segurança do Estado dele se apoderaram, nada mais me resta a fazer senão publicá-lo imediatamente.
A. Soljenítsin
Setembro de 1973
No presente livro não há personagens imaginárias, nem acontecimentos imaginários. Pessoas e lugares são mencionados pelos seus proprios nomes. Quando os mencionarmos por iniciais, isso deve-se a consideração de ordem pessoal. Se não forem referidos de maneira alguma, isso se deve simplesmente ao fato de a memória humana não ter retido os seus nomes.
Mas tudo se passou exatamente assim.
No ano de 1949 aconteceu-nos, a mim e a alguns amigos, lermos uma nota que nos chamou a atenção na revista Priroda (Natureza), da Academia das Ciências. Impressa em caracteres minúsculos, noticiava que na bacia do rio kolimá, durante umas escavações, tinha-se deparado, casualmente, sob uma camada glacial, com uma corrente congelada, nela tendo sido descobertos, também congelados, espécimes de fauna fossilizados (com várias dezenas de milenios de idade). Esses peixes, ou tritões, conservam-se tão frescos - testemunhava o correspondente científico - que as pessoas presentem quebravam o gelo ali mesmo e comiam-nos com prazer.
Não poucos leitores da revista se devem ter espantado bastante pelo fato de a carne de peixe poder conserva-se durante tão longo tempo no gelo. Mas foram menos os que poderam discenir o sentido verdadeiramente heróico dessa nota imprudente.
Nós compreendemos tudo num ápice. Vimos com clareza toda a cena, nos seus mínimos pormenores: como as pessoas presentem quebravam o gelo, com exarcebada pressa, e como, menosprezando os elevados interesses da ictologia, se acotovelavam uns aos outros, arrancavam os pedaços da carne milenaria, passavam-na pela chama, descongelavam-na e saciavam a fome.
Compreendemo-lo porque as pessoas presentes éramos nós próprios, porque nós éramos membros dessa poderosa legião de ZEKS, a única na terrra que podía comer os tritões com prazer.
Kolimá era a maior e a mais célebre ilha, o pólo da ferocidade desse assombroso país do Gulag, desgarrado pela geografia num arquipélago, mas psicologicamente ligado ao continente, a esse quase invisível, quase intangível país habitado pelo povo Zek.
Este arquipélago, cheio de enclaves, recortava-se polícromo sobre o outro país, a que estava incorporado, penetrava nas suas cidades, pairava sobre as suas ruas - e no entanto havia quem não se apercebesse de nada, embora muitos tivessem ouvido falar vagamente de algo; só os que lá tinham estado conheciam tudo.
Entretanto, como se tivessem perdido o dom da fala nas ilhas do arquipélago, eles guardavam silêncio.
Numa inesperada viragem da nossa história, uma parte insignificante desse arquipélago foi dada a conhecer o mundo, mas as mesmas mãos que nos apertaram as algemas abrem agora conciliadoramente as palmas e dizem: "Não se deve...não se deve remexer no passado!...aquele que recorda o passado perde um olho!" E, no entanto, a provérbio acrescenta: "Aquele que o esqueçe perde os dois!"
As décadas vão correndo e também irrecuperavelmente as cicatrizes e as úlceras do passado. Outras ilhas, durante esse tempo, estremeceram, foram-se derretendo, desbordaram, e o mar polar do esquecimento vem embater sobre elas. E um dia, no século futuro, este arquipélago, o seu ar e os ossos de seus habitantes, congelados numa camada glacial, serão apresentados aos descendentes como um inverossímil tritão.
Não ouso escrever a história do arquipélago: não me foi dado a ler os documentos. Mas alguem algum dia, virá a consegui-lo?...Aqueles que não desejam recordar tiveram já tempo bastante (e terão ainda mais) para destruir os documentos todos, completamente.
Os onze anos que ali passei, incorporei-os não como uma desonra, nem como um sono maldito, mas quase amando aquele mundo monstruoso. E agora, tendo-me tornado por um feliz reverso a pessoa a que foram confiadas as inúmeras cartas e ralatos tardios, talvez eu saiba transmitir alo dos seus ossos e da sua carne e, para além disso, da carne ainda viva dos tritões ainda hoje vivos.
Dedico este livro a todos aqueles a quem a vida não bastou para o relatar. Que eles me perdoem não ter visto tudo, não ter recordado tudo, não ter percebido tudo.
Escrever um livro como este é superior às forças de um só homem. Além de quanto eu próprio trouxe do arquipélago - na minha própria pele, na minha memória, nos ouvidos e nos olhos - o, material para este livro foi-me fornecido por relatos recordações e cartas de...(segue-se uma relação de duzentos e vinte e sete nomes)
Não lhes exprimo aqui o meu reconhecimento pessoal: este é o nosso monumento comum de amizade a todos os torturados e mortos.
Tienda Cafe Con Che
Porque é Imprescindíve Sonhar
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