LP ERIK SATIE VOL 2 CORDELIA CANABRAVA ARRUDA
1980
RGE 3031019
E difícil resistir a tentação de iniciar um comentário sobre Erik Satie com uma citação jocosa. Ele tanto tratou de camuflar-se e a sua obra, que acabou por construir uma verdadeira cortina de fumaça ao seu redor. E seus contemporâneos confusão e perplexidade diante de suas “boltades” – nunca se sabia se ele falava serio ou não, mesmo nos títulos e comentários em suas partituras - , hoje Satie acha-se injustamente confinado num escaninho menor da musica deste século.
Marginal, excêntrico, incompetente, farsante – estes e inúmeros outros adjetivos que lhe foram pespegados gratuitamente. Na realidade, Satie é um enigma a ser resolvido. Pistas, ele as forneceu em profusão, mas, como todo bom autor de romances policiais, muitas delas são falsas, reduzindo-se a meros jogos de cena.
Eis algumas. Mas, como nunca se tem certeza que há pistas corretas neste efetivo campo minado, não haverá conclusões definitivas. Mesmo porque um dos fascínios de Satie é exatamente multiplicar-se em milhares de Saties fragmentados, cada qual contradizendo o seguinte e dele fazendo pouco. Assim quase a maneira de Nietzche, um filosofo que até hoje não foi enquadrado por seus comentários num corpo de doutrina dogmático. No fundo nossa herança ocidental praticamente nos obriga a buscar identidade, e separar o falso do verdadeiro. O que são verdade e falsidade, serão conceitos que não são exteriores, portanto artificiais?
De onde vem essa sensação de estranheza que provoca sua produção? Não de uma harmonia decididamente revolucionaria, ou mesmo de uma recusa total da tonalidade, numa época de frenesi, em que tudo foi negado (Schoemberg) e ao mesmo tempo afirmado (o Stravinski neoclássico do pós-guerra). Quem sabe, então, suas melodias obedeçam a um padrão inédito de construção. Nem uma coisa nem outra. Muito menos o ritmo, um parâmetro em que Satie jamais se deteve, ao menos aparentemente. O cromatismo de suas primeiras composições rescendia a Wagner; o abuso de acordes paralelos de sétimas, nonas e décimas primeiras no começo e das quartas e quintas no fim poderiam indicar arcaísmo medievalizantes ou então influxos ravelianos ou debussystas; muitas das melodias eram construídas segundo a lei da facilidade, isto é, calçada em modelos populares.
Arrisco que essa estranheza advém de uma lógica inteiramente original intuída por Satie. A afirmação tem varias implicações. A primeira dela é que ele já estava pronto, maduro, quando escreveu a sua primeira peça. Já naquele momento Satie compreendera e impusera um universo com leis e regras próprias. Bastou-lhe, posteriormente, expô-lo sob as mais variadas formas, no conjunto de sua obra, até 1925.
Trata-se de uma logica puramente espacial, num sentido de um multiforme mosaico no qual a melodia escolhida segue sendo continuamente reexposta, tal e qual. Em suma, a inexistência da noção clássica tradicional de desenvolvimento anula a noção de tempo na obra de Satie. É mais ou menos como se Beethoven, na Quinta Sinfonia, repetisse durante algumas dezenas de minutos o famoso tema sol-sol-sol-mib. Ou então que alguem contasse uma historia que consistisse apenas na repetição da seguinte frase: “Era uma vez uma menininha que detestava laranjas”.
Esta postura é particularmente significativa, se pensarmos que foi exatamente nas primeiras décadas deste século que o parâmetro tempo passou a ser privilegiado por alguns compositores (como Webern, por exemplo). Mas, por outro lado, tal afirmação pode sugerir que Satie empreendeu uma real batalha na defesa dessa posição. Enganou-se quem apostou nisso. Pois esta concepção é muito mais resultado de uma real praxis de vida (quando era jovem, me diziam: ‘Você verá quando tiver 50 anos’. Tenho 50 anos; e não vi nada), do que uma postura estética racional.
Enquanto seus contemporâneos Ravel e Debussy trabalhavam neste nível (o primeiro explorando alquimicamente a timbrística da massa orquestral, o segundo instaurando o acorde como mônada auto-suficiente de uma nova organização do discurso sonoro), Satie, escrevia como musica como quem acorda-come-anda-conversa-dorme, isto é, vegetativamente.
Ele não se manteve nem foi ingênuo por vontade, como muitos querem; nem aspirou-o o que é muito conveniente a uma sociedade capitalista, em que uma das regras é destacar-se enquanto individualidade, para escapar a camisa-de-força do coletivo – qualquer lucro que adviesse de sua produção musical. Neste sentido, é exemplar sua observação de que “Ravel recusou a legião de honra, mas toda a sua musica a aceita.”.
Hoje sua musica não choca nem irrita; apenas mostra-se monótona ao ouvinte desatento. Mas, quem conseguir ultrapassar esta barreira, ou cortina de fumaça, penetrará num universo fascinante, em que os sons se organizam do mesmo modo como nossa pele, através dos poros, respira. Ou seja, naturalmente, biologicamente.
João Marcos coelho.
Ate hoje SATIE, que nasceu “muito jovem numa época muito velha”, resiste a qualquer “rotulo”. Impossível inseri-lo em qualquer escola ou estilo, ou seja lá o que for. A absoluta originalidade não pertence a nenhuma escola, a nenhum tempo, a nenhum lugar. É solitária e única.
Assim é a música de Satie. E, como toda obra absolutamente original, é muito mais para ser SENTIDA do que ENTENDIDA. Por isso, sente-se e ama-se Satie, ou não se sente e destesta-se Satie. Não há meio termo.
Sua música como que “segue despojada; passa... e uma silhueta sugere vagamente alguma coisa...”.
Disse Henri Salguet: “A música de Satie é como ele. Solitária. Mas nela, encontramos a companhia ideal que a música pode ser quando ecoa em nossa própria solidão, preenchendo-a com calma, pureza e magia.”.
TROIS GYMNOPEDIES – um canto nostálgico prisioneiro das harmonias dos baixos. Uma vez (lento e doloroso); uma segunda vez (lento e triste); e ainda uma terceira vez (lento e grave). O tempo escoa duração pura.
PIECES FROIDES (DANSE DE TRAVER) – novamente três, numero que ocupam na obra de Satie, lugar preponderante. Supertiçao? Conhecimento de iniciação? Ao notar as indicações para o interprete, verdadeiras metáforas: Sempre – Só – Torne-se visível por um momento – Ainda – Não vá muito alto – Muito longe...
VIEUX SEQUINS ET VIELLES CUIRASSES – mas que simplicidade. A própria infância transborda dessas três pequenas peças onde as canções folclóricas “O Rei Dagoberto” e “Malbrouck” passam ilesas. Algumas “palavras” na partitura: I – Chez le Marchand D`or: Ele acaricia seu ouro / cobre-os de beijos / ...parece uma criança / esta feliz como um rei...
II – Danse Cuirasse – Dança-se em duas fileiras / A primeira fileira não se move / A segunda fica imóvel...
III – La Defaite de Cimbres (Cauchemar) – uma criança dorme em sua caminha. Todos os dias, seu avo lhe da um curso estranho de historia geral, baseado em vagas lembranças. Fala frequentemente do famoso Rei Dagoberto, do duque de Marborough e do grande general Marius. Em seus sonhos, a criança vê seus heróis, lutando contra os Cimbros na Batalha de Mons-en-Puelle” (1304). Algumas das frases que acompanham a composiçao: Chuva de Dardos / Retrato de Marius / Boiorix, rei dos Cimbros / ...Os Dragões de Villars / A coroação de Carlos X...
GNOSSIENNES – cinco das seis Gnossiennes herdaram o baixo em acordes já constatado nas Gymnopedies (substituídos por harpejos na 4º). Todas se caracterizam por uma melodia suave e linear. Nitidamente “oriental”. Note-se a indicação de colorido na sexta: “Com convicção e uma tristeza rigorosa...”.
VERITABLES PRELUDES FLASQUES (pour un chien) – parodia do estilo barroco, SEVERE REPRIMANDE, com criações de um coral, em valores longo no baixo e “bordados” na mão direita, uma avalanche de quartas, quintas a nu e sétimas menores EN JQUE; é um contraponto despojado, a duas vozes, em SEUL A LA MAISON. As anotações em Latim, Corpulentus / Caermoniousus / Pedagogus / Nocturnus / Illusorius / Substantialis / Opacus / Subitus...convidam a interpretação desse gênero de fantasia de puro virtuosismo.
DESCRIPTIONS AUTOMATIQUES – Tema: uma canção popular que polariza a harmonia, influencia o clima sonoro e determina o porte melódico. Em SUR UM VAISSEAU ouve-se “Maman les petits bateux”. Note-se em SUR UNE LANTERNE o “jogo” entre stacattos e legatos e em SUR UN CASQUE, o toque marcial. Importante frisar: estas peças executam sem pedal.
AVANT DERNIERES PENSEES – IDYLLLE, AUBADE E MEDITATION, dedicadas respectivamente a Debussy, Dukas e Ravel. Três peças “experimentais” onde as supremas audácias de Satie são claramente notadas. A melodia modula constantemente e o acompanhamento em ostinato mantém uma tonalidade pivô ou hesita entre duas tonalidades vizinhas (Aubade).
Pietro Maranca.
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