quinta-feira, 8 de maio de 2008

JOAO CABRAL DE MELO NETO ENTRE O SERTAO E SEVILHA


JOAO CABRAL DE MELO NETO ENTRE O SERTAO E SEVILHA


Ediouro
2º Ediçao
1997
ISBN 8500003065



A INTIMIDADE DO FLAMENCO
O flamenco quer intimidade
assim no cante que no baile
Aquele que fazer de mais dentro
se quer de quem faz pôr-se ao centro,
centrarse, viver seu caroço,
e a parti dele dar-se todo,
esse cante ou baile é monólogo
que se funciona para o próximo,
quer um próximo conivente
capaz de centrar-se igualmente.
Não quer um palco que o dissolva,
seu fazer se faz boca a boca.


A REDE OU O QUE SEVILHA NAO CONHECE
Há uma lembrança para o corpo,
a tua: é a de um abraço de rede,
esse abraço de corpo inteiro
de qualquer rede do Nordeste,
da rede que tua Andaluzia,
que é tão da sesta, não conhece,
e mais que abraço, é o abraçar
de tudo que pode estar nele;
é abraço sem fora e sem dentro,
é como vestir outra pele
que ele possui e que o possui,
uma rede nas veias, febre.


DISCURSO DO CAPIBARIBE
Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.
Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.
O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.
Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que um sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que um sonho de um homem.
Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.
Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.
E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao partir
suas ilhas negras de terra.
Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.
Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).


CRIME NA CALLE RELATOR
"Achas que matei minha avó?
O doutor a noite me disse:
ela não passa desta noite;
melhor para ela, tranqüilize-se.
À meia-noite ela acordou;
não de todo, a sede somente;
e pediu: Dáme pronto, hijita,
una poquita de aguardiente.
Eu tinha só dezesseis anos;
só, em casa com a irmã pequena:
como pode não atender
a ordem da avó de noventa?
Já vi gente ressucitar
com simples gole de cachaça
e arrancarse por bulerías
gente da mais encorujada.


MENINO DO ENGENHO
A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.
Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guarda-se.
A cicatriz não tenho mais;
o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é virus ou vacina.



Tienda Cafe Con Che
Porque é Imprescindível Sonhar

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