Aos benignos e inteligentes leitores
"Em toda ação humana, quase por necessidade, ocorrem erros; porém onde surgem mais facilmente e são numerosos e com diferentes formas, é na impressão dos livros; e não posso imaginar outra coisa onde possa haver mais. E parece-me que a empresa de corrigi-los se possa comparar com a luta de Hércules com a Hydra das cinqüenta cabeças: por um lado, assim como quando seu valor e força, cortava uma, nasciam duas, da mesma forma, da mesma forma, no entanto com conhecimento e diligência se corrige um erro, quase sempre surgem não dois mas três ou quatro, com freqüencia e maior importância do que tinha o primeiro"
Essa declaração foi extraída do prefácio do tipógrafo da obra de Achille Fazio Alesandro, impressa en Veneza em 1563,
Introdução
A encruzilhada teórica fundamental do Anticristo (concluido em setembro de 1888 e publicado em 1895) é a conexão fundamental entre a moral (o cristianismo, a religião...) e o niilismo. Esta conexão é alheia ao sentido comum, para o qual a afirmação dos valores morais se apresenta como contrário do niilismo, e o homem religioso como a antítese do niilista: o sentido comum consente perfeitamente a presença, entre os que professam a virtude e são considerados almas piedosas, de vigaristas e trapaceiros; e também aceita que até mesmo numa vida imoral se encontre uma tensão ideal, uma piedade religiosa desviada de seus fins naturais mas ainda assim capaz de afirmar que o bem e o mal, a verdade moral e a mentira, o ideal e o nada continuem sendo dois conceitos inconciliavelmente opostos entre os quais nenhuma confusão é possivel. Embora historicamente nem sempre seja fácil separar os bons dos maus, a conviccão da má-fé, o altruismo do interesse pessoal, para o sentido comum a oposição filosófica entre moral e niilismo parece indiscutível: tanto assim que, mesmo que todos os virtuosos tivessem paradoxalmente mentido, disto não se podería concluir que a vida moral é mentira, mas sim apenas que ela é difícil, talvez impossível. A eventual impossibilidade histórica do ideal moral não chegaria de forma alguma a comprometer a sua identidade conceitual e aliás, sob certos aspectos, representaria a melhor salvaguarda da sua pureza.
São justamente estas certezas do sentido comum que Nietzsche despedaça; e não de um ponto de vista empírico, fenomenológico ou histórico, mas sim dentro de uma perspectiva filosófica. Para Nietzsche a moral, o ideal, o ter-de-ser é mentira, niilismo, trapaça: até se, paradoxalmente, todos os virtuosos tivessem de boa-fé, disto só poderiamos deduzir que todos eles foram e são incondicionalmente niilistas. A sua recusa da moral, do cristianismo, da religião, não é histórica, mas sim principalmente filosófica e essencial; não se fundamenta tanto nos estragos provocados pela moral quanto no próprio conceito de valor. Os lamentáveis efeitos da moral e da religião ja estão todos implícitos na sua origem: nenhum efeito delas poderia ser mais prejudicial do que o fato de existirem.
O valor no puro sentido kantiniano de "ter-de-ser", é o que importa independentemente do fato de ser, da sua realidade histórica: o seu status conceitual, aliás, baseia-se justamente na ir-realidade. Por definição, o ideal é alguma coisa que vale independentemente da realidade, do processo histórico: abre uma dimensão que esta acima da efetuação, e que permite justamente expressar um julgamento sobre a mesma, uma avaliação e um veredicto. A moral constitui-se como tal na medida em cria uma distância em relação a realidade e é justamente este afastamento da efetuação que Nietzsche atinge o próprio âmago da questão. Nenhuma moral é possivel enquanto houver uma completa aderência à vida, como nos animais: o afastamento desta aderência, implícito na posição moral, é niilista porque despreza e desvaloriza imediatamente aquilo de que se separa, isto é a realidade, mesmo quando expressa a respeito dela um julgamento positivo. O niilismo é independente da positividade ou negatividade do julgamento: ele consiste no movimento que se arroga uma super-realidade é niilista na sua própia substancia, pois sabe muito bem que não pode afirmar-se e manter-se em nível factual, empírico, vital. Ela quer apresentar-se como ideal pois não é real, inventa um além simplesmente porque não consegue ser aqui, neste momento, fala numa "vida verdadeira" transcende e futura porque foi vencida na única vida existente.
Para Nietzsche a moral nasce da pretensão de guardar e manter vivo aquilo que foi condenado pela história, o "doentio", o "digno de esquecimento", aquilo que fracassou no nível dos fatos, criando um novo âmbito por definição distinto da realidade, que é justamente o do ideal, o ter-de-ser, do valor: a ele é portanto atribuida a abstração, a intemporalidade, a impessoalidade, a validade universal. Com estes atributos, a moral procura defender e tirar das garras da morte as experiencias que deixaram de ser vitais: enquanto elas eram de fatos vivas, não havia necessidade alguma de afirmar o seu valor.
No Anticristo por exemplo, Nietzsche examina o conceito moral de Deus como bem supremo, e mostra que a fraude e o niilismo não consistem apenas na afirmação da sua existencia, mas sim que ja estão implícitos na sua concepção. O seu ateísmo é portanto mais radical do que se possa imaginar, pois tem a ver com o próprio conceito de Deus: "Negamos Deus enquanto Deus...Se nos demostrassem este Deus dos cristãos, só poderiamos acreditar menos ainda nele". O Deus original dos hebreus era a expressão de um poder natural do povo hebraico: e era portanto concebido antropomorficamente como pai e rei, poderoso e vingativo. Quando este poder começou a faltar, em lugar de abandonarem seu símbolo, os sacerdotes hebreus deram inicio a um processo de moralização e purificação do conceito de Deus que encontrou o seu coroamento no cristianismo. Moralidade e pureza tornam-se atributos de Deus como reação contra o fato dele não ser mais real: o conceito moral de Deus fundamenta-se portanto na sua morte: "O nada divinizado, a vontade do nada santificada em Deus!"
O cristianismo para Niezsche, é apenas a continuação e a evolução do hebraismo. Paulo de Tarso e os primeiros cristãos, não podendo suportar a morte de Jesus, distorsem seus ensinamentos em sentido moral, introduzindo a perspectiva do pecado, da culpa, do além, que nada tem a ver com o Jesus histórico: na base do cristianismo há portanto um ressentimento a respeito da realidade, da vida e do ser, que justamente se manifesta na superfetação moral que o distingue. O cristianismo é portanto a mais niilista de todas as religiões: a sua origem esta na tentativa de disfarçar a derrota histórica de Jesus, a sua vergonhosa morte na cruz, para que pareça uma vitoria, em algum mundo do "além".
Por isto mesmo para Niezsche cristianismo e moral estão ligados à fraqueza, à doença, à decadência: eles não aguentam a morte de Deus, o natural declinio e o esgotamento das experiencias, o fim de uma época, pois não são capazes de criar a realidade, de gerar experiencias originais, de inaugurar novas eras. Procuram preservar um passado desprovido de vida porque não podem renascer. Enquanto as experiencias continuam atuais, não precisam minimamente daquele algo a mais fornecido pela afirmação verbal da sua veracidade e da sua moralidade: quando vem a faltar o prazer natural que as acompanha e constitui a razão de ser delas, então ja é hora de abandoná-las; a moral, ao contrário, é a tentativa de conservá-las, transformando-as em verdade e dever: o papel do padre é justamente esconder, com a sanção do seu valor, o fim histórico delas. A religião e a moral acarretam portanto uma fraude fundamental: a afirmação da verdade ou santidade de alguma coisa significa "o padre esta mentindo..." O que é real é "modesto"; qualquer proporção avaliatoria, por sua vez, é uma implicita declaração de impotência e niilismo.
Será então Niezsche um apologista do poder, do recurso a força, das vias de fato? Um admirador incondicional do sucesso, da mais brutal efetuação, do arbítrio? Estará ele propondo a obediencia total ao mais forte, ao vencedor, ao prevaricador, ao explorador dos fracos e humildes? Será que o seu desprezo pela religião e pela moral implica o elogio da violência e da barbarie?
Esta interpretação de qualquer lado ela venha, nada entende de Niezsche e do seu pensamento: Niezstche não é um filosofo da identidade (do poder, do ser), mas sim um filosofo da oposição (da diferença, do devir). Desde o século IV o cristianismo é a religião dos vencedores do poder, do Estado e é nesta perspectiva que Niezsche ataca. A oposição da moral e do cristianismo ao 'mundo" e a política é uma pseudo-oposiçaõ que oculta uma básica conivência: a moral é o meio na qual os padres fundamentam o seu poder, "tiranizam as massas e arregimentam as manadas". O projeto histórico do cristianismo consiste justamente numa gigantesca mistificação graças a qual os mais niilistas, os mais impotentes, os menos capazes de criação, tornam-se donos do mundo em nome de entidades transcendentes que eles mesmos gerem e administram.
Este projeto concebido por Paulo de Tarso só pode ser realizado mediante uma imensa trapaça que falsificou que falsificou e subverteu todos os aspectos da realidade assim como o próprio conceito de realidade. Uma vez que no plano da realidade - que para Niezstche é diferença, devir, movimento contínuo - os padres levariam certamente a pior, eles simplesmente prescindiram dela: animados por um rancor, por um azedume, por um ódio profundo e radical por ela, fundamentaram seu poder sobre abstrações (o conceito de Deus como bem supremo...0, sobre desvarios (o pecado...), sobre fantasias (o além...) que exigiam um esforço contínuo, um constante desgaste de energia para sua manutenção. "Os padres sempre precisaram da guerra", do fanatismo e da indignação, pois somente através de um estado permanente de alarme, de excitação e de histerismo, provocado e sustentado pelo sangue dos mártires e pelas fobias dos indíviduos mais emotivos e menos racionais, era possivel manter as massas longe da realidade. A lógica do ódio espírito sectário, a mentalidade da vingança - todas idéias introduzidas por Paulo - são indispensáveis ao sucesso histórico do cristianismo. Niezsche mostra portanto o artifício, o estorvo, o caráter derivado e reativo da identidade, do poder, do ser, e ao contrário a naturalidade, a potência, a dimensão original e primária da diferença e do devir: ele fica do lado do mais forte pois pensa que assim seja a vida e não o estado, a diferença e não a identidade.
Nietzsche é portanto o filósofo de uma oposiçao forte, não de oposições fracas: é assim que lhe parecem o socialismo, o anarquismo, o feminismo...No entender dele, estes movimentos representam apenas a continuação leiga da moral cristã, assim como a filosofia é a continuação da teologia. Tudo prometem, mas nada cumrem; nascem e se desenvolvem num estado de profundo mal-estar em relação a realidade, e transformam esta situação morbida num privilégio e até mesmo num dever; estão desprovidos de uma força autonoma e só vivem de ressentimento, de compaixão, de indignação; pretendem "direitos iguais" para todos e desta forma eliminam de saída as diferenças entre eles; são portanto movimentos de renuncia que se contentam com promessas e esperanças, que tem em relação a vida uma atitude projetiva, pois sempre colocam o essencial alhures, num futuro que nunca se realizará. A própria reinvindicação de um direito apresenta, do ponto de vista de Niezsche, um aspecto ingênuo ou hipócrita: pois com efeito nenhum direito será reconhecido a não ser que tenha a força para tornar-se reconhecido; se tiver esta força, o fato de apresentar-se somente como "direito" enfraquece-o em lugar de fortalecê-lo.
O pensamento Niezscheano recusa portanto de saída o conceito de ideologia, de verdade práctica, de teoria a serviço da ação. A idéia tipicamente hebraica e cristã do livro que muda a vida, herdada e assimilada pelo socialismo (onde os intelectuais tomam o lugar do padre) baseia-se numa reviravolta completa da relação natural entre a experiência e o livro a aos seus intépretes privilegiados a autoridade de tirar os leitores e seguidores de seu presente e da sua realidade, impondo-lhes leis, preceitos e comportamentos desprovidos de qualquer relação com suas exigências concretas. Nietzsche contrapõe á Biblia o código de Manu, que lhe parece totalmente desprovido de preocupações morais e pedagógicas: ao contrário do evangelho, ele não espera a sua realização no futuro e está, ele mesmo, intimante ligado à realidade do povo que o produziu. Os livros programáticos, parenéticos, ideológicos, por sua vez, pedem ao futuro aquilo que não tem, procuram esconder a sua irrealidade sugando a vida dos outros: são como "vampiros" que vivem do sangue de que lhes presta atenção.
A esta fraude, segundo Niezsche, é preferível a "idiotice" do Jesus histórico ou o quietismo pessimista dos budistas. Estes também são uma expressão da decadência, isto é, não amam a realidade que provocam neles um profundo sofrimento, mas pelo menos não reagem contra ela, não criam um mundo mórbido e fictício da teologia e da moral; procuram abster-se da realidade com a aceitação incondicional de tudo, com a eliminação de toda a luta. A 'boa nova" ensina justamente o fim de qualquer oposição, de qualquer dialética: Jesus nunca nega, nunca contradiz, nunca julga; portanto os seus seguidores, começando pelos evangelistas e por Paulo, traíram da forma mais indigna o sentido da sua vida. De modo parecido, o budismo defende-se da dor mediante um hedonismo quietista que elude qualquer confrontação, qualquer obrigação, qualquer coação. Niezsche considera esta falta de oposição muito mais sadia do que a falsa oposição reativa da moral e do cristianismo: embora fruto de uma radical fraqueza, pelo menos não tenta ser outra coisa a não ser aquilo que é, e com esta modéstia reencontra uma relação natural com a realidade da qual a moral está por definição excuída: "a beatitude não é prometida, não esta vinculada a condições: é a unica realidade", alguma coisa dada, imediatamente presente, um modo de viver, que a nada mais se liga a não ser a si mesma, não uma crença ou uma doutrina.
Assim como a "idiotice" de Jesus é diferente da moral, apesar de ambas serem aspectos da decadência, da mesma forma o ceticismo filosófico é diferente do niilismo inconfesso da moral, embora ambos se movimentam no espaço aberto pela morte de Deus. Mas enquanto a moral oculta esta morte através da elaboração de um conceito cada vez mais abstrato e puro de Deus, o ceticismo reconhece abertamente a irreversibilidade desta situação e abre portanto caminho para aquela ultrpassagem do cristianismo, da decadência, do niilismo, que o próprio Niezsche representa.
Com efeito, a moral reage à morte de Deus, à geral inversão e confusão de todos os valores que disto decorre, porque é fraca, porque sendo ela mesma desprovida de realidade espera salvar Deus e os valores afastando-os o mais possível da experiência concreta da vida, afirmando a diferença de Deus e a pureza da vontade, do querer. Desta forma a fé e a pureza suprem a falta de realidade. O ceticismo, ao contrário, não receia admitir a morte de Deus, a relatividade e a impureza de tudo, pois contem in nuce uma realidade que supera tudo aquilo que é estático, fixo, imóvel: Niezsche chama esta realidade de vida, instinto, vontade de poder; é o que Freud chama de inconsciente, pulsão. Mais filosoficamente poderia ser chamada de oposição excessiva.
Estas considerações permitem que Nietzsche interprete o processo histórico e filosófico da era moderna de forma profundamente original e fecunda. O movimento que a partir de Lutero e da Reforma protestante leva a Leibniz, a Kant, à filosofia alemã adquire um sentido restaurado e regressivo. A revolta do mundo alemão contra Roma é a desforra anti-histórica da teologia e da moral diante do ceticismo realmente progressista e essencialmente criativo do renascimento italiano (Maquiavel...). A grande tradição filosófica alemã entre os séculos XVIII e XIX nada mais é do que a continuação leiga da teologia protestante: ela é ainda mais hipócrita na medida que esconde o vicio secreto, a fraqueza fundamental da qual nasce. PO isto, Niezsche afirma que é preciso ser mais inflexível com os protestantes do que com os católicos e define o filosófico como "o criminoso dos criminosos".
A importancia fudamental da Itália e da sua cultura na história universal consiste no fato de Deus ter morrido, neste país, antes e de forma mais definitiva do que em qualquer outro lugar: comparando num trecho póstumo de 1887, as características populares dos países europeus, Niezsche define o genio nacional italiano como o "mais livre", "o mais fino", "o mais rico". A liberdade consiste na ausencia de condicionamentos metafísicos, isto é no descarado reconhecimento do caráter temporal e político deles; a finura, no secular pendor para a tendenciosidade, pelas qual palavras e ações assumem arguciosamente sentidos diferentes daqueles que significam na aparência; a riqueza, na capacidade de usar a maior variedade de meios na criação de um espetáculo urbano e social (renascimental, manierista, barroco).
O ceticismo, no entanto, é apenas um ponto de partida: ele permite o exercício da suspeita, supõe o desmascaramento das fraudes, impede os movimentos retrógados e obscurantistas, mas não pode cristalizar-se numa regra, numa lei, num princípio. Quando isto acontece, uma recaída na metafísica é inevitável: na Itália, e degeneração metafísica do ceticismo é o qualunquismo. A Itália qualunquista, resignada e conformada, é o que pode haver de mais distante da "vontade de poder" de Nietzsche. A concepção nietzscheana da "eterna volta" nada tem a ver com a repetição do passado, com a imutabilidade da situação histórico-social, com a negação do novo: esta interpretação atribuída no Assim falava Zaratrustra ao "anão", é expressamente recusada por Niezsche. A "eterna volta" não é uma lei histórica, mas sim um movimento da vontade que quer apoderar-se do passado também, para livrá-lo da metafísica e da identidade. O humanismo italiano, segundo o qual o homem nunca muda, é o que pode haver de mais alheio ao pensamento de Niezsche, que está constantemente preocupado com a possibilidade do outro, do diferente, do oposto. Esta preocupação manifesta-se, por exemplo, no conceito de Übermensch, que não significa absolutamente "homem superior", nem "super homem", mas sim além homem, a superação do homem pensado na metafísica como provido de uma identidade e portanto irremediavelmente forçado à prisão de uma "natureza", de uma "condição" da qual não pode livrar-se. Deste ponto de vista O Anticristo continua sendo apenas uma premissa daquela obra dedicada à vontade de poder que Niezsche não conseguiu escrever.
Mario Perniola.
Tienda Cafe Con Che
Porque é Imprescindível Sonhar