MELHORAMENTOS
1978
APRESENTAÇÃO
Anna Maria Martins já publicou um livro de contos de muito boa qualidade: A trilogia do Emparedado. Os deste livro apresentam por vezes soluções diferentes: mas se o focalizar-mos com certa atenção, veremos que embora não haja entre eles nenhum conto específico emparedamento, ou mesmo fechamento em sentido estrito, há uma certa obsessão com a vida como universo fechado e do homem como um ser limitado nele e por ele. Homem sufocado por telefones emblemáticos, por exemplo, que são como os abutres que o perseguem no sonho, que o deixam ferozmente acuado e de repente lhe fazem falta. Noutros contos aparece a vida social da burguesia montada como um ritual que deveria sugerir harmonia e acordo; mas que é apenas a simulação disto, porque a natureza real das pessoas, restrita e apertada por ele, rompe a cada instante com brutalidade vulgar, mostrando o vazio das convenções e dos que a práticam. As pessoas querem ser amáveis, justas, e se revelam afinal grosseiras. Os homens de negocio se organizam e organizam a sua vida para chegarem ao topo; mas vivem com o sentimento de que estão presos na engrenagem, que tudo isso não significa nada. Portanto, estamos todos mais ou menos fechado, amarrados de varios modos, emparedados simbolicamente, próximos dos emparedados dos contos iniciais do primeiro livro, E isso parece corresponder a um tema profundo, arraigado na Autora por baixo dos assuntos ostensivos.
Outro traço que vejo nos dois livros (graças a mania que nós professores temos de classificar e encontrar pontos comuns) é uma espécie de tendencia quase checoviana para liquidar o sensacional e construir a narrativa com os salvados do nada. Às vezes há momentos crispados e expectativas de coisa rara; mas no final das contas cada narrativa parece oca sob este aspecto e a tremenda violência nasce apenas da rotina de cada dia. A banalidade e o ramerrão são ingredientes constantes nas receitas despojadas de Anna Maria Martins, manifestando-se a cada instante neste livro como vazio, falta de sentido, equívoco, violência inglória, miúda, e mesmo desolação.
Com igual frequencia vemos tambem a saliência dos objetos no tecido narrativo, que é entremeado de fios descritivos abundantes. Televisões, aparelhos de som, corpos, lâmpadas, móveis, garrafas, roupas, automóveis se articulam com o gesto e o pensamento para definir as pessoas, marcando de maneira sutil um universo manufaturado que fechou o homem nas suas malhas Nestes contos parece que o ser firmou um pacto desesperado e não desejado com os objetos que o nosso tempo cria de maneira alucinada para disputar o espaço essencial do homem. O ser vive com eles, vive deles e acaba vivendo para eles.
Com isso a narradora transita do objeto incrustado no relato para as relações humanas de um mundo endurecido. Relações que se cristalizam e amarraram a alma, fazendo-a viver segundo suas normas que entram em choque com o melhor de cada um. A consequencia é que essa barreira só pode ser quebrada pela violência dos sentimentos e das emoções, como se por meio dela o ser procurasse furar os muros e chegar a um teor real de humanidade, mesmo deformada, rompendo os padrões. É o caso do conto onde a mocinha ama execrando os pais, agredindo-os e vendo agredida, lendo seus atos pelo avesso e vendo afinal a miragem do acordo se esboçar no fundo do conflito.
O estilo de Anna Maria Martins talvez seja um pouco freado demais. Note-se a supressão quase ascética de numerais e demonstrativos, ou a anteposição meio engomada de qualificativos. Quer dizer que também o estilo fica um pouco amarrado, para corresponder funcionalmente a esse mundo diminuido do quotidiano, onde a dor e as expansões afetivas são disfarçadas, desvirtuadas ou transformadas em desgaste, sem força para irem até a tragédia rasgada. É que nestes contos a tragédia é o dia-a-dia.
Antonio Candido