sábado, 6 de junho de 2009

TRAÇANDO PORTO ALEGRE LUIS FERNANDO VERISSIMO JOAQUIM FONSECA ARTES E OFICIOS

Café Con Che © 2004
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LUIS FERNANDO VERISSIMO E JOAQUIM FONSECA TRAÇANDO PORTO ALEGRE
Artes e Oficios
3º edição
ISBN 858541825
144p
1994





A CIDADE TRAÇADA
Toda cidade que tem um rio é bela. Porto Alegre exagera, esparrama-se ao longo de vários que, de lambuja, se transforma num lago imenso. Com toda essa lindeza, gosto de tomar nossa cidade como modelo e temática. Tenho desenhado como ela era, como ela é e como a desejo.
Pode parecer estranho atribuir sexo a uma cidade. Porto Alegre, que tem alma, eu vejo feminina. Caprichosa e temperamental, é a um só tempo provinciana e avançadinha, mantendo hábitos recatados, porém sem nunca perder o compasso com o nosso tempo. Metrópole, é neurótica, opiniática e exigente. Também aldeia, é pudica, singela e dócil.
Sensualmente lânguida, se deita estirada no seu sinuoso contorno fluvial. Dominadora e envolvente, avança voraz sobre os morros, pelos vales e pelas planuras. Impetuosa, lança-se ao alto em pontas de concreto. Fogosa, vibra entrelaçada por artérias dinâmicas e congestionadas. Carola, reza com fé na Festa dos Navegantes. Peleadora, trabalha feito louca nas oficinas do quarto distrito. Ciumenta, esconde com o muro seu perfil mais lindo.
É faceira quando se veste com as flores do jacarandá, anunciando a primavera é manhosa ao se derreter nos dias tórridos de verão. Romântica, se pinta toda nos fins de tarde, no outono. Malvada, venta fria e cinzenta nas noites de inverno.
Quando aqui cheguei, nos tempos do bonde, do rolo compressor e das balas esportivas, Porto Alegre ainda matinha, ao menos no centro, um certo ar tradicional que lembrava Buenos Aires. Com o tempo, foi se tornando mais interesseira, substituindo seus cafés de esquina pelas agências financeiras. Além da inocência, perdeu nos últimos anos muito de sua identidade original. As matinês e as anedotas de rua, por exemplo, foram sumindo, dando lugar aos cômicos da tevê. Mas foi ganhado outras coisas que a fazem moderna, adulta e madura, como a Feira do Livro, espaços de cultura, museus, teatros, galerias de arte.
Tanto o LFV como eu conhecemos outras, é verdade. Mas cada um na sua, elegemos este porto como nosso ponto de referência. Traçá-la, para nós, é literalmente e graficamente um ato de amor.
Joaquim da Fonseca.

OS BONDES
Falam que os bondes podem voltar. Que voltem os bondes. Dizem que os bondes são econômicos, que não poluem, que os bondes nunca deviam ter acabado. Não sei. Que peçam desculpas aos bondes e os coloquem na linha de novo.
Mas a economia é a menor das virtudes do bonde. A importância cultural do bonde vai muito além da sua utilidade. O bonde foi uma lição de vida para algumas gerações. Foi uma parte importante da minha educação e, se hoje tenho um pouco de equilíbrio emocional, bons reflexos e o mínimo de caráter para não dar na vista, devo tudo ao Petrópolis até o fim linha ou J. Abbott. O desvairio da juventude atual se explica facilmente: é fruto de uma infância sem bondes. Que voltem os bondes, antes que seja tarde.
Os bondes ensinavam tudo.
DESTREZA, CORAGEM E AUTOCONFIANÇA
_Certamente o período mais importante da minha vida foi dedicado à preparação psicológica para a minha primeira grande prova de bravura (e, pensando bem a última): subir no estribo com o bonde andando. Corresponderia ao primeiro encontro solitário com um bisão da planície do Guri de Neanderthal. Um ritual de passagem. Depois do feito, você era um homem. Não precisava ter ninguém olhando. Era um triunfo pessoal e secreto, e depois o mundo nunca mais era o mesmo. Descer com o bonde em movimento não era nada, uma menina faria. Bastava continuar correndo depois de tocar com os pés no chão. E pular para a calçada antes que o carro que viesse atrás fizesse você voar. Fácil. Subir com o bonde andando era outra história. Levei uns dois meses para criar coragem antes do meu primeiro pulo. Não falhei. Nunca falhei. É um orgulho que eu carrego no bolso até hoje como um amuleto.
RESPEITO AO PROFISSIONAL, A IMPORTANCIA DE UM OBJETIVO NA NOSSA EXISTENCIA.
_ Fora o Tesourinha e dois ou três personagens do Globo juvenil, meu herói da infância era o fiscal de bonde. Aquele cara que pulava de um bonde em movimento para o outro, sem nunca perder o quepe, olhava para o marcador do bonde e fazia misteriosas marcas num papel verde com um carimbo vermelho que tirava do bolso. Durante algum tempo hesitei entre ser aviador ou fiscal de bonde quando crescesse. Decidi ser fiscal de bonde. Se os bondes voltarem, terei a minha chance.
HONESTIDADE E CONFIANÇA NO PROXIMO
_O cobrador passava pelo corredor, perguntando: “Já pagou?”. O mundo era mais simples, então. E a passagem mais barata.
CONTROLE MUSCULAR
_Andar na parte detrás de um bonde gaiola, na descida, sem segurar em nada, só no jogo de perna, preparava o individuo para todos os percalços. Diziam que quando o São José ia jogar nos Eucaliptos, o time entrava em forma na viagem de gaiola.
Que voltem os bondes.
Luis Fernando Veríssimo / Joaquim da Fonseca

A MAL ENTENDIDA
Porto Alegre vive à beira de alguns mal-entendidos.
Para começar, vive à beira de um rio que não é rio. O Guaíba é um estuário, ou como quer que se chame essa espécie de ante-sala onde cinco rios se reúnem para entrar juntos na Lagoa dos Patos. Mas todos o chamam de Rio Guaíba.
A rua principal da cidade não existe. Você rodará toda a cidade à procura da Rua da Praia e não a encontrará. Usando a lógica – o que é sempre arriscado, em Porto Alegre – procurará uma rua que margeia o rio (que não é rio), ou que comece ou termine numa praia. Se dará mal. Não há praias no centro da cidade, e nenhuma rua ao longo do falso rio se chama “da praia”. Finalmente, desconfiado de que a rua principal só pode ser aquela que concentra a maior parte do tráfego de pedestres no centro, você consultará a placa e lerá “Rua dos Andradas”. Mas ninguém a chama de Rua dos Andradas, chamam pelo nome antigo, Rua da Praia. Por que da praia? Ninguém sabe. Só se sabe que ela vai da Ponta do Gasômetro, que não é mais Gasômetro, até a Praça Dom Feliciano, que todos chamam Praça da Santa Casa, passando pela Praça da Alfândega, que já foi Praça Senador Florêncio, mas voltou a ser Praça da Alfândega, porque ficava na frente da Alfândega – que não existe mais.
Confuso, você talvez entre no prédio da prefeitura para pedir satisfações, só para descobrir que entrou no prédio errado. Existe outra prefeitura, a nova, atrás da velha, que por sua vez tem na frente uma praça chamada não Porto Alegre mas Montevidéu.
Na prefeitura certa talvez lhe digam para ir se queixar ao bispo, tendo que, para isto, subir a Rua da Ladeira até a Praça da Matriz, onde fica a Catedral. Desista. Você não encontrará a Rua da Ladeira, que hoje se chama (só ele se chama, porque ninguém mais a chama assim) General Câmara, e a Praça da Matriz na verdade é a Praça Marechal Deodoro, embora poucos porto-alegrenses saibam disso.

A única vantagem de toda esta confusão é que você precisará de muito tempo para ir decifrando Porto Alegre, ao contrario do que acontece em cidades previsíveis e sem graça como Paris, Roma, etc., onde tudo tem o mesmo nome há séculos – e ir degustando-a aos poucos. Acho que não se decepcionará.
Vencidos os primeiros mal-entendidos e localizada, por exemplo, a “Praça da Matriz”, você pode fazer uma visita ao Theatro São Pedro, um dos orgulhos da cidade com seu prédio em estilo barroco português e sua pequena platéia em forma de ferradura. Há quem diga que é o teatro mais bonito do Brasil. Certamente é o mais bem cuidado. Inaugurado em 1858, esteve fechado por uns tempos e foi magnificamente restaurado para sua reinauguração há poucos anos. Da sacada do seu primeiro andar, onde ficam o foyer e o café, você pode olhar a Praça de cima. Se tiver sorte, os jacarandás estarão florindo. Do outro lado da praça estão a Catedral e o palácio do governo estadual, ou Palácio Piratini, esse no estilo neoclássico francês. Duas coisas surpreendem alguns visitantes em Porto Alegre pela quantidade insuspeitada: a arquitetura neoclássica e os jacarandás.
Saindo do Theatro São Pedro você pode aproveitar para dar uma olhada na Biblioteca Pública (outro exemplo do estilo neoclássico), e principalmente uma espiada no seu Salão Mourisco, ricamente decorado. Desça a Rua da Ladeira. Está bem, a General Câmara. Você chegará ao chamado Largo dos Medeiros e a outro mal-entendido municipal. O largo tem este nome extra-oficial em homenagem a um café que tinha ali e não tem mais. Não, não se chamava Café Medeiros, os donos é que se chamavam assim. Não importa, vire a esquerda e siga pela Rua da Praia – dos Andradas! Dos Andradas! – passando a Praça da Alfândega, onde todas as primaveras se realiza a famosa Feira do Livro de Porto Alegre.
Depois de uma curta caminhada você chegará ao antigo Hotel Majestic, hoje belissimamente transformado na Casa de Cultura Mario Quintana, com teatros, cinemas e salas para cursos e exposições. Vale a pena entrar para ver o que foi feito do velho hotel e ir até o Café Concerto na sua parte superior, ou então deixar para voltar lá na hora do pôr-do-sol. Um pouco mais adiante na mesma Rua da Praia, à sua esquerda, você verá a igreja Nossa Senhora das Dores, com uma grande escadaria na frente. A fachada e a escadaria são iluminadas à noite, é uma das bonitas visões da cidade.
Volte pela mesma Rua da Praia em direção ao centro. Ao chegar à Avenida Borges de Medeiros, pegue a esquerda e desça até o Mercado Público, perto da prefeitura e da já citada Praça Montevidéu, onde está a graciosa Fonte de Talavera de La Reina, um presente da comunidade espanhola à cidade. Passeie dentro do mercado e veja as suas “bancas” especializadas, como a que vende vários tipos diferentes de erva para o chimarrão. Os morangos com nata batida da Banca 43 são famosos.
O pôr-do-sol não pode ser reivindicado como atração turística de Porto Alegre, já que tecnicamente ele acontece fora dos limites estritos do município, mas sabe se colocar para assisti-lo é uma das artes da cidade. O novo Café Concerto, na cúpula do antigo Hotel majestic, com uma vista despendida do “rio” e do poente, já tem seus adeptos, mas o ponto tradicional dos crepusculistas é o mirante do Morro de Santa Teresa. Você precisará de transporte para ir do contra até lá e se for de táxi, para evitar outro mal-entendido, diga ao motorista que quer ir ao “Morro da Televisão”. Do mesmo mirante você terá a melhor vista da cidade, cuja topografia já foi comparada à de São Francisco na Califórnia, e verá, lá embaixo, o imponente estádio do grande Sport Club Internacional.
Outro bom lugar para se olhar a cidade e o pôr-do-sol é o Morro do Turista. Para chegar lá você precisa pedir para ser levado ao Morro da Polícia. É o mesmo morro.
Aos domingos pela manhã, boa parte da população de Porto Alegre vão ao “Brique da Redenção”, assim chamado porque fica no Parque Farroupilha. Calma. O Parque Farroupilha, um dos maiores parques urbanos do mundo, é conhecido pelos porto-alegrenses como Parque da Redenção. Ou, sucintamente, “a Redenção”. “Brique”, na língua gaúcha, é o encurtamento de “Briqueabraque” e é uma feira de antigüidades em que tudo, até revista da semana passada, é considerado antigüidade. Mas em meio as porcarias assumidas, há loucas e pratarias, livros valiosos, selos e moedas e principalmente muita gente vendendo, comprando ou só passeando.
O parque se chama Farroupilha em homenagem à revolução do mesmo nome que os gaúchos fizeram em 1835 contra o império, proclamando a República Rio-Grandense. Mas embora todo mundo aqui hoje comemore a insurreição, Porto Alegre manteve-se fiel ao governo central e por isto mereceu o titulo de “leal e valorosa cidade” conferido pelo imperador Pedro II, e que está no seu brasão.
Outro mal-entendido.
Luis Fernando Veríssimo / Joaquin Fonseca

BAIXO ASTRAL
E os argentinos não vieram.
Soluçam as ondas e o vento: não vieram, não vieram.
Onde estão seus filhos chatos, suas mulheres estridentes, e os seus dólares, e os parentes?
Não vieram, não vieram.
E a sua fome? E os seus dentes?
Não vieram, não vieram.
Se arrependimento matasse haveria mais corpos na praia do que óleo e restos de arraia. Donos de hotéis e lancherias se unem em homilias. Como os tratamos mal! Fomos insensitivos. E agora estamos aqui, reduzidos a explorar os nativos...
Choram as gaivotas: no veniram, no veniram. E os sorveteiros gritam “Ki-ruim!” e os milhos se quedan en su tinta. Diz um corvo “nunca más” e não há quem o desminta. E de Torres ao Chuí, passando por Cidreira e Pinhal, só se vêem as conseqüências de um tremendo baixo astral. Tragédia conjuntural.
Só agora lhes damos valor. Boa gente, boa gente. Um pouco prepotente. Aquele ar de quem não nos liga, de quem tem o Maradona na barriga, mas simpáticos à sua maneira – e que carteira ligeira!
Grandes consumidores, e não só de alfajores. Eletrodomésticos, horrores. Nos encantava seu canto: “Me encanta, me encanta, quanto?”. Nunca mais, nunca mais.
Não discutiam aluguel, nem o preço do pastel. E só ficavam um pouco assim se não encontrassem o Clarin. Boa gente, boa gente. Só um pouco diferente.
Agora é tarde, Inez não vem. Nem Carlito, nem Mercedes e muito menos Menem. Dizem que a crise é a culpada mas é uma história mal contada. Pois nossa crise é igual a deles, tudo nos iguala e junta, e nem por isso, convenhamos, há menos brasileiros em Punta.
Luis Fernando Veríssimo / Joaquim da Fonseca


Café Con Che © 2004

Torne-se voluntário e faça a diferença!

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